Abortando o problema.

Algumas considerações que elaborei sobre o texto de  Hélio Schwartsman publicado na Folha de São Paulo. Meus comentários sobre o texto estão grafados em azul e alguns parágrafos marcados em  em amarelo.


Hélio Schwartsman, 44, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

Abortando o problemaComo vários leitores pediram, arrisco hoje um comentário sobre o aborto, assunto em que resvalei na coluna da semana passada.

Comecemos com um pequeno experimento mental. Suponhamos por um breve instante que as leis e instituições funcionassem direitinho no Brasil e que todas as mulheres que induzem ou tentam induzir em si mesmas um aborto fora das hipóteses previstas em lei (risco de vida para a mãe ou gravidez resultante de estupro) fossem identificadas, processadas e presas. Neste caso, precisaríamos construir 5,5 novos presídios femininos (unidades de 500 vagas) por dia apenas para abrigar as cerca de 1 milhão de ex-futuras mamães que interrompem ilegalmente suas gravidezes a cada ano. (Utilizo aqui o número estimado por Mario Francisco Giani Monteiro e Leila Adesse para 2005).

A impossibilidade de cumprir a lei não justifica o crime.

Recursos igualmente vultosos teriam de ser destinados à edificação de orfanatos, para abrigar as milhares de crianças que ficariam desassistidas enquanto suas mães cumprissem pena.

Premissa errada : Se estas mulheres estão cumprindo pena é porque conseguiram abortar, logo não há criança nenhuma para cuidar a não ser que está já tenha um ou mais filhos, e que logo devem ter uma família para assisti-las não necessitando de orfanatos ou similares.

Vale observar ainda que essa minha conta despreza um número significativo de médicos, parteiras ou simplesmente comadres e amigas que de algum modo auxiliaram as nossas reeducandas a livrar-se dos fetos indesejáveis e, pela lei, também deveriam ir a cadeia.

Certo. São participantes e facilitadores do crime de assassinato.

Minha pergunta é muito simples: Você acha que a aplicação universal do que preconiza a lei do aborto tornaria o Brasil um país melhor ou pior do que é hoje?

Sempre que um pais cumpre a lei preconiza-se uma melhoras nas suas estruturas democráticas. Se existe a lei ela deve ser comprida.

Impedir a morte é algo bom. Logo um pais que protege indefesos de serem mortos é um pais melhor.

Logo a aplicação universal da lei do aborto tornaria o Brasil um pais melhor.


Se você não respondeu "melhor", há de concordar comigo que o problema do aborto não é uma questão que se resolva na Justiça. Aliás, normas que a maioria de nós não quer ver integralmente cumpridas são sérias candidatas a leis que não "pegam".


Concordo parcialmente. A lei regulamenta o convívio e estabelece a proteção das pessoas. O simples fato de existir a lei não significa que o crime vai diminuir ou desaparecer, mas ele significa um direcionamento do pensamento moral e ético da sociedade. A aplicação da lei é a consequência do crime. A orientação e educação a prevenção. As medidas preventivas devem existir para que o crime não ocorra. Caso ocorra deve ser aplicada a lei.

E isso deveria pôr quase todo mundo do mesmo lado. O importante, em termos práticos, é criar as condições para que as mulheres não precisem abortar, o que se consegue basicamente com a oferta de métodos contraceptivos gratuitos ou pelo menos muito baratos à população (com o que a Igreja Católica não concorda) e com educação. Os estudos demográficos são unânimes em apontar uma fortíssima correlação entre o nível de instrução da mulher e a diminuição da fecundidade e, por conseguinte, dos abortos clandestinos. Tal fenômeno, vale reforçar, já está em curso no Brasil. Trabalhos da década de 90 estimavam em até 1,4 milhão o número anual de interrupções forçadas da gravidez.

O problema é que, mesmo que avancemos a passos largos nessas políticas, ainda assim sobraria um contingente de mulheres que, pelas mais diversas razões, não conseguiu prevenir a gravidez e deseja abortar. Em minha opinião, trata-se de uma decisão que cabe exclusivamente a elas, mas já estou me antecipando.


A mulher tem o direito sobre o seu corpo. Não sobre o corpo que está gerando. Apesar de que uma das afirmações dos abortistas é que a mulher é dona do seu corpo, e encaram a geração do ser como parte do corpo da mulher e assim a mulher poderia amputar esta parte do seu corpo sem motivo algum.

Partindo desta premissa qualquer mulher deveria poder adentrar em hospital, chamar um médico e dizer :

Dr. Não estou satisfeita com meu braço e como sou dona do meu corpo desejo que o Sr. ampute este meu membro.

O médico então deveria responder : Claro, a senhora é dona do seu corpo, estatemos amputando o seu braço daqui uma hora sem problemas.

Creio que esta cena não aconteceria desta forma no mundo real ou ocorreria?
A lógica pela argumentação do aborto é a mesma.


Esse é um debate no qual as pessoas parecem menos interessadas nos aspectos práticos (embora eles sejam os que de fato importam) do que nas discussões de princípio. Assim, antes de prosseguir, precisamos resolver algumas questiúnculas prévias como "quando começa a vida?", "a alma existe?", "qual o alcance do Direito?".

O argumento central dos antiabortistas é o de que a vida tem início na concepção e deve desde então ser protegida. Por essa visão, o embrião teria os mesmos direitos de qualquer ser humano.



Primeira premissa errada destes paragrafos : o autor refere-se a aspectos práticos, o que no aborto é um aspecto prático? o problema de uma mãe ter um filho indesejado, que lhe traria transtornos, gastos e trabalho?


O que diferencia estes aspectos práticos de uma mãe que já tem um filho, digamos de 7 anos? tem gastos com escola, cuidados e muitos transtorno, o mesmo vale para uma mãe com um filho de 2 anos ou seis meses?


Porque tenho que penalizar então estas mães que não optaram para acabar com os transtornos antes? Não poderia, ou deveria possibilita-las de poderem se livrar deste transtorno agora? Hora, a mãe percebe  que seu filho de seis meses está dando muito trabalho e gastos, e que não foi uma boa ideia ter esse filho, logo a lei deveria dar o direito dela matá-lo, ou não ?

Segunda premissa errada, ou talvez indutivamente errada: o autor induz na frase "Por essa visão, o embrião teria os mesmos direitos de qualquer ser humano." que há uma diferença entre feto e ser humano, desta forma quem lê rapidamente associa que o feto não é um ser humano.

Mas se não é um ser humano o que é? o "feto" vai se desenvolver no que?

Alquem já viu por um acaso um feto de um ser humano gerar outra coisa além de um ser humano? uma mulher já deu a luz a um cão ou gato ou jacaré ?

Um feto humano somente pode se desenvolver para um ser humano, assim como um ser humano criança somente pode se desenvover para um ser humano adulto.


É no mínimo complicado afirmar que a vida começa com a concepção. Tanto o óvulo como o espermatozoide já eram vivos antes de se unirem. O que daria para dizer é que a fusão dos gametas marca a criação da identidade genética do que poderá tornar-se um ser humano, se as condições ambientais ajudarem. Uma semente não é uma árvore e não recebe do Ibama o mesmo nível de proteção que uma respeitável tora de mogno. O que a concepção produz é um ser humano em potência, para utilizar a distinção aristotélica, autor tão caro à igreja. E não faz muito sentido embaralhar potencialidades com atualidades; afinal, no longo prazo somos todos cadáveres.

Só o que torna coerente a posição do Vaticano, é um dogma de fé: o homem é composto de corpo e alma. E a igreja inclina-se a afirmar que esta é instilada no novo ser no momento da concepção. Só que ninguém jamais demonstrou que existe alma e muito menos que ela se instala no embrião quando o espermatozoide fertiliza o óvulo. O dissenso não opõe apenas religiosos a desalmados ateus. Uma das mais importantes autoridades da igreja, santo Tomás de Aquino, afirmou, acompanhando Aristóteles, que a alma de garotos só chegava ao embrião no 40º dia. Já a de garotas (vocês sabem como são as meninas!) só no 48º dia.


A comparação da arvore com o ser humano é completamente sem fundamentos. Não podemos comparar grandezas distintas o ser humano com uma arvore, a não ser que para o autor seja tudo a mesma coisa, i.e. o ser humano é um animal que deve e pode ser comparado com qualquer outro. Apenas para um teste, colocamos na sua frente uma arvoré e um cão e lhe damos um serrote dizendo escolha um dos dois e serre-o ao meio. Qual vc, desde que seja mentalmente normal, escolheria?

O dogma religioso de que já na concepção há alma se contrapõe ao dogma dos ateus de que a alma não existe, ambos são dogmas.

Mas será que a noção de alma para em pé? Podemos dizer que ela não casa muito bem com o que sabemos de biologia. Estima-se que 2/3 a 3/4 dos óvulos fecundados jamais se fixem no útero, resultando em abortos espontâneos. A "vida em potência", no mais das vezes, torna-se, não "vida em ato", mas "aborto em ato". Se a alma é soprada por Deus no momento da concepção, qual é o sentido desse verdadeiro holocausto anímico? Para cada alma humana que vinga duas ou três são sacrificadas antes mesmo de vir à luz. Tamanho desperdício seria menos insensato se a Igreja Católica abraçasse, como as religiões mais antigas, a doutrina da metempsicose (transmigração das almas). A alma não teve sucesso nesta tentativa, paciência, poderá conseguir mais tarde. Mas, como o catolicismo rejeita a tal da reencarnação, cada aborto resulta numa alma irremediavelmente perdida. É bem verdade que essa aparente incongruência não é um problema para o verdadeiro fiel, que jamais questiona os atos de Deus. Se Ele comanda uma Auschwitz espiritual, deve ter motivos para isso, mesmo que desafiem a nossa compreensão.

Está é a primeira argumentação realmente consistente do autor. Porém não podemos legislar sobre eventos naturais e fisiológicos. Se o aborto é natural ou se não há fixação do ovulos no útero este é um processo natural que está sob designos de Deus. Assim como não temos respostas para um terremoto que tira a vida de milhares de seres humanos, definir como se processa a vida ou em que momento está possui alma ou não, não teriamos capacidade de dizer.

Porém a nossa argumentação é que todo o feto é um ser humano em potencial e enquanto ele estiver naturalmente se desenvolvendo ele é vida e é um ser humano. Qualquer interrupção ao desenvolvimento natural é um ato contra a vida, logo contra Deus.

Só que o desperdício não é a única dificuldade que a introdução da alma gera. Para começar, a própria concepção não é exatamente um instante, mas um intervalo que varia de 24 a 48 horas. Esse é o tempo que transcorre entre a penetração do espermatozóide no óvulo e a fusão genética dos gametas. Será que a alma leva todo esse tempo para ser soprada no novo ser? Pior, se assumimos todas as conseqüências dessa noção, mulheres que usam DIU ou tomam a pílula do dia seguinte deveriam ser processadas como assassinas em série, pois esses métodos contraceptivos impedem que o concepto --já com alma-- se implante no útero. (A Igreja Católica de fato condena toda forma "não natural" de prevenção da gravidez, mas a maioria dos protestantes não vai tão longe).

A linha argumentativa da resposta é a mesma que a anterior.

 
É, entretanto, o fenômeno da gemelaridade que revela todos os limites e contradições da idéia de alma. Como já expliquei em outras colunas, gêmeos monozigóticos (idênticos) se formam entre um e 14 dias depois da fertilização, quando o embrião sofre um desenvolvimento anormal dando lugar a dois ou mais indivíduos com o mesmo material genético. A alma, é claro, já estava lá. Cabem, assim, algumas perguntas. Ela também se divide, ou outras almas surgem para animar os demais irmãos? De onde elas vêm? Quem fica com a "original"? E, se gêmeos partilham a mesma alma, como fica o livre-arbítrio? Se um irmão peca, leva o outro ao inferno? Ou a alma boa prevalece sobre a má, carregando para o paraíso uma ovelha negra? "In dubio pro bono".

Ibdem

A situação fica ainda mais divertida se pensarmos nas quimeras, isto é aqueles indivíduos compostos por materias genéticos provenientes de diferentes zigotos. O quimerismo é relativamente raro entre humanos, mas ocorre quando dois ou mais embriões se fundem antes do quarto dia de gestação. Se os óvulos são do mesmo sexo, o mais provável é que surja um indivíduo perfeito, embora às vezes com um olho de cada cor ou mesmo com diferentes tonalidades de pele e cabelo. Na hipótese de serem um de cada sexo, o resultado será o hermafroditismo.

Teríamos aqui pessoas com duas ou mais almas dentro de si mesmas. Qual prevalece? Se uma for boa e outra má a pessoa se divide para ir ao paraíso e ao inferno? Como? Por turnos ou pela repartição física? Ou tira-se a média e a ela vai para o purgatório?


Ibdem


O que procurei mostrar com essas considerações é que não é tão certo que a vida comece com a concepção. Essa é uma ideia que depende muito mais de dogmas de fé não provados do que de boa informação colhida em campo.

A fé não necessita ser provada. Quando é provada não é mais fé.


O meu palpite (e é só um palpite, porque eu, ao contrário de alguns religiosos, tenho muito poucas certezas) é que não dá para estabelecer um instante mágico a partir do qual o embrião se torna um ser humano. Ou melhor, até podemos eleger esse momento, mas ele será tão arbitrário quanto qualquer outro.


Logo, por este racioncinio não há limite para o aborto, posso fazer com semans ou com meses de gestação, afinal para o ateu a alma não entra no corpo humano nunca, haja vista não acreditar em almas.


E, já que a definição é necessariamente arbitrária, não vejo motivos para não a ajustarmos às nossas necessidades.

Vale reparar que é esse o tratamento que a lei brasileira já dispensa hoje ao assunto, como se pode constatar a partir da pena que ela reserva para o aborto (1 a 4 anos) e para o homicídio simples (6 a 20). A própria Bíblia faz a mesma distinção em Êxodo 21:22.

Minha sugestão é que deixemos a hipocrisia de lado. Se acreditamos na versão católica da vida, deveríamos banir o aborto em todas as ocasiões (inclusive quando há perigo de vida para a mãe) e equiparar sua pena à do homicídio qualificado (sem possibilidade de defesa para a vítima), que é de até 30 anos. O otimista sempre poderá afirmar que a construção de tantos presídios vai estimular a economia.

Alternativamente, podemos avançar mais um pouco na necessária arbitrariedade das definições e permitir que, no início da gestação, a mulher possa decidir livremente se quer ou não abortar e, à medida que a gravidez avança, as proteções dadas ao feto vão sendo ampliadas. É a definição mesma de processo. Eliminar um feto em estágios mais avançados da gravidez significa tirar uma vida? É claro que sim, mas nosso sistema jurídico admite várias situações, até mesmo de homicídio, que são escusadas. É o caso da legítima defesa, do estrito cumprimento do dever, entre outros.

Em qual momento aquele ser deverá ser portador de todos os direitos inerentes ao ser humano? um feto que está com uma doença degenerativa, será que por esse conceito atingiria um momento que o indentificaríamos como ser humano? ou pelo fato de possuir uma doença genetica ou mental poderiamos descartá-los em qualquer momento ?

O mundo não é exatamente um lugar bonito. Mas não precisamos piorá-lo ainda mais transformando-o numa imensa penitenciária.

Necesitamos transformar o mundo em um lugar mais justo e digno de viver, nem que para isso tenhamos que construir mais presídios sim.